sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Yüian, a descendente de Cictlali a Sexta


Foi engraçado. A Yüian gostava imenso de mim enquanto um irmão mais velho e um homem que a ajudava na aprendizagem de andar a cavalo. Ela nunca andara de cavalo. E eu! Eu! Eu estava ansioso para mostrar-lhe o quão divertido era sentir o vento a roçar a cara. 

Ela correu num casaco de pele de búfalo, escuro. Os brincos de pena de 
quetzal estavam abafados pela massa de cabelos negros que lhe caía até a uma cintura, infantil.     

- Jovem Senhor! - Ela arfou, o cachecol de alpaca com o padrão Aosbeltzi nortenho escuro, de um azul quase índigo. O escorpião negro estilizado no padrão do cachecol contrastava com o casaco de peles velho e as botas de neve de pele de urso.   

Embora já estivéssemos nos meados de Março a neve caía, suavemente pelas árvores. 

Sorri, um pouco envergonhado.  Estendi a mão que segurava o casaco de pele de lobo Nortenho. Eu encomendara o casaco num impulso. Isto era uma loucura! Eu faço sempre as coisas com um plano, premeditadas. Não sou um homem de emoções. No entanto, o rapaz louro de cabelo apanhado num puxo estava a oferecer três camadas de 
kimono com um casaco de pele à menina de treze anos.  

- Pensei que não podías apreciar o passeio sem um casaco de peles. Ainda está frio. 
 
- Senhor Von Tifon! Não era preciso! - Disse ela, no seu Onisamatzeka pouco fluente, as maçãs morenas, quase acastanhadas, a corarem num tom vermelho, como se tratassem de morangos.    
 
- Yüian...- Soltei uma risada maliciosa. Tentei disfarçar a preocupação e o ciúme. - Porque é que eu não iria ficar preocupado contigo?  Podem aparecer todo o tipo de criaturas por aí. 

- Nenhum 
yaojing iria conseguir aproximar-se de mim. - Ela disse convicta. Revelou um pequeno arco com tamanho suficiente para que ela conseguisse segurar.    - Ainda sou uma descendente do Clã do Escorpião Negro.   
  
De seguida, apeou-se no cavalo e olhou para mim com um ar convidativo.  

Subi para cima do meu cavalo.   

"Tanta confiança para uma menina tão inexperiente!" Pensei ouvir na minha cabeça. 

- Yüian...Já alguma vez ouviste falar dos Sussurros Di Euncätzio? 

O rosto sorridente da rapariga de treze anos tornou-se sério 

- O suficiente para saber que é uma "doença" sem cura.  A minha irmãzinha tem o mesmo problema, ela começou a ter sonhos há uns meses atrás.  

- Há uns meses?!   

De um momento para o outro, a ideia que o novo Clã do Escorpião Negro descendía do...Que aquele maldito clã descendía do Kato Ryuketsu não parecía ser tão ridícula! De repente, um nó estava a prender-me a garganta. Se aquela rapariguinha era uma Cy-bata - e uma descendente do traidor do Ryuketsu - ela seria muito mais forte assim que atingisse a maioridade.  A ideia de ter de enfrentar uma 
feiticeira com o sangue de Kato Ryuketsu fez com que eu ficasse a tremer!  Não me agradava nada ter de lidar com alguém como Miyaku, ou a Misato. 

- Meu senhor?!  Não se preocupe...Eu não herdei aquela doença, ou pelo menos, eu nunca ouvi uma voz ou um coro de vozes!   

- Que tipo de inferno isso seria se tu conseguisses sentir as forças dos nossos antepassados. Isso significaria que tu tinhas um pouco das 
almas deles! 

- Oh! Isso---! Isso é horrível!   

- Eu ainda não atingi a maioridade humana, Yüian. Mas posso dizer-te : a tua irmã será uma mais-valia para a tua aldeia. É como a velha canção do Kato Hibiki "que serve ter uma cor diferente de um exosqueleto, meu Senhor? Um filho de Aschkazhak'rat continua a ser um filho de Aschkazhak'rat."  

Eu sentia-me obrigado a contar a imensa quantidade de energia que o sangue Di Euncätzio poderia dar a um Cy-bata, quanto mais a uma descendente do Kato Ryuketsu. Quanto mais olhava para aqueles olhinhos verdes e as sobrancelhas arqueadas numa expressão de alarme, mais forte se tornava o desejo de proteger, de ensinar a menina. 

 - Como assim? - Perguntou com um ar esperançoso.  

- Eu podía contar-te como Kato Hibiki conseguiu dominar os Sussurros.  Mas é mais divertido passar pelo lugar!   

- Ah...Isso não é um pouco perigoso?   - Ela estremeceu um pouco. 

Eu sabía o porquê. O Kato Hibiki, ao tentar livrar-se dos Sussurros Di Euncätzio, criou uma enorme fenda na terra onde o mar se encontrava com uma falésia, a vinte quilómetros leste do meu castelo. Muitos dos habitantes de Shunamari que passavam por aquela falésia em férias ou numa viagem de negócios diziam-se tontos.  Ao descansarem perto da falésia, eles começavam a ter pesadelos.   

Todas as noites, eu sonhava com o dia em que poderia trazer o meu Pai até à falésia. O mar iria engoli-lo, e aí, todas as minhas ânsias, todos os medos seriam varridos, como as vagas varrem a costa, implacáveis.  Mas eu não iria contar isto à pobre Yüian. Ela não precisava de saber acerca disso. 

Sorrateiramente, fiz com que os cavalos partissem na direcção da falésia. Não porque tivesse intenções de matar aquela alminha inocente! Não; a morte à beira da falésia, aquela queda trágica estava reservada para o velho.  Eu; eu...Eu gostava de observar a falésia.  Não há outra maneira de o descrever. Eu sentía-me fascinado.  

Yüian começou a assobiar, para distrair-se do barulho, da chiadeira infernal que algumas janelas fazíam quando o vento gélido passava por elas! Abriam-se e fechavam-se! Abriam-se e fechavam-se, com um chicotear feroz. 

- Não gastes a tua voz... Ainda está frio. 

- Desculpa. Nunca pensei que Vossa Alteza era dono e senhor da minha pessoa! - Respondeu a Yüian num tom de desafio.    


sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Os Sussurros Di Euncätzio

Bolas, que isto é longo... Escrever na primeira pessoa - especialemente com o Duque Adrian Demetrius Von Tifon - é um desafio. Eu gostava de estabelecer o facto dos Sussurros. Embora eles sejam uma grande causa para vários desastres no reino mágico da Bellanária, o Duque não é das pessoas que se deixa influenciar mais por esta maldição. Se houvesse uma lista dos descendentes dos Di Euncätzio que são quase possuídos pela maldição, o Ryuketsu e o Qing estariam nos primeiros cinco, logo com a Kato Misato e a Baronesa Lyubova Lavrentyeva..Pensando bem, o Qing nunca destruíu uma civilização cidade estado inteira...


Os Sussurros  

"Num sentido, a minha irmã nunca tinha os pesadelos. Ela não passava as noites em branco, a tocar o cravo., no meio da biblioteca; a meio de afastar os sonhos, os sonhos sangrentos!

Não sei se há alguém que esteja a ler isto, mas se for um descendente Di Euncätzio, a partir dos oito anos, há uma coisa que nos acontece, pelo menos uma vez por mês, quando o mais profundo do inconsciente humano se refugia no espírito, no trascendental. 

Os Sussurros Di Euncätzio assaltaram os meus sentidos desde que eu era um miúdo.  Pode acontecer até quando estamos de pé. Ouvimos uma voz a troçar da nossa condição Humana.  Quando um homem fala connosco.  Os Sussurros são uma parte espiritual de uma maldição, se bem que pareça mental às vezes. Estudei durante décadas para encontrar uma equivalente às doenças modernas, mas não há. Os Sussurros são tão pessoais que uma pessoa diria que quem quer que fosse que teria criado aquela maldição, esse alguém não podía ser Humano. 

Num sentido, a minha irmã nunca tinha os pesadelos. Ela não passava as noites em brancos, a tocar o cravo no meio da biblioteca; a meio de afastar os sonhos, os sonhos sangrentos! Simplesmente, nós nunca falávamos sobre os Sussurros! Eles não aconteciam, ponto final!  Mas eles aconteciam. E eu conseguía ouvir os risos da minha irmã. Talvez porque Ryuketsu se tivesse apoderado do corpo dela. Talvez porque Saburou tivesse feito isso. Não sei. Eu tinha medo. Tinha medo, mas nunca falava disso com os meus irmãos.

Os avisos da minha Mãe sobre os perigos desta maldição ecooam nas memórias. Há centenas, há mais de mil e quinhentos anos, Saburou e Yasunori, furiosos com a situação vergonhosa da família, amldiçoaram todos os seus descendentes e membros da família - até mesmo a cunhada - a viverem atormentados pelos espíritos dos antepassados. A maldição cresce a cada geração. Quando um Di Euncätzio, quando uma pessoa com o meu sangue morre, esse alguém - a alma dessa pessoa - é agarrada pelos fantasmas de mais de dois mil anos de ódio e raiva.  

Não importa o medo, a raiva, a tristeza que a pessoa, o ser-humano, o Cy-bata tenha dentro de si. Os Sussurros Di Euncätzio amplificam as nossas emoções.  Dou graças por ter uma Mãe que era uma yuki-onna, uma deusa da neve. Essa parte do meu sangue, o sangue Murakami, luta constantemente contra o Di Euncätzio. É verdade que tenho uma parte Von Tifon. E é o sangue do antigo Deus das Tempestades que faz com que aqueles idiotas não tenham o menor controlo sobre mim.  

Eu sei a história, a triste história de como Saburou e Yasunori perderam a sua humanidade. Com ela, os dois irmãos destruíram uma civilização inteira

Esta não é uma história em que os pequenos heróis derrotam os maus. O mal de Saburou, de "Samiel", de Yasunori não é um mal que se possa ser derrotado com espadas ou a fé num deus. Vingança, ódio mútuo, ambição desmesurada, luxúria...Todos esses defeitos os irmãos Di Euncätzio tinham. As Crónicas da Lógica e da Loucura são narradas pelo próprio Saburou, nos seus poucos episódios de saúde mental.   A doença que se viria a aproveitar dos defeitos Humanos , a maldição, chamem-lhe o que quiserem, mas algo que força três irmãos a tentarem destruírem uma cidade com mais de um milhão de habitantes não pode ser algo deste mundo. Ou talvez seja. 

Eu nunca odiei o velho que era o meu Pai. Pelo contrário, eu gostava muito dele. Aqueles olhos azuis, cinzentos, com um ar calmo, observavam-me com admiração e orgulho.  Ele era, em tudo, Humano.  O kimono escuro, azulado, pendía daquele corpo magro, pálido. O Pai já não tinha cabelo quando eu era um adolescente, nem um único fio branco. Ele andava apenas com os kimonos que a Mãe lhe fazía, e isso era a única coisa importante para ele. Ele não era o verdadeiro Duque. Não, essa honra ainda pertencía ao meu Avô.

Mas! Mas! Aquele olhar tão humano, tão doce, tão inocente, tão idiota, fazia-me ficar roxo de vergonha. Como é que eu - um senhor da mais alta estirpe, podía ter como Pai um homem fraco, caquético? Não era pelo dinheiro, oh não! Eu já tinha o meu futuro assegurado! Tenho-o, sempre tive!  

A ganância nunca foi um dos meus defeitos.  Mas as vozes - oh, as vozes infernais! - davam razão à minha vergonha. Diziam que eu nunca poderia ser filho de um Humano!  

- Adrian Demetrius?  

Olhei para a criatura eternamente bela que era a minha Mãe.  Aquela mulher que me dera tudo, desde o próprio leite materno até abraços e carinhos sem fim.  Os cabelos compridos que caíam até à borda do kimono verde-escuro, era como uma torrente de obsidiana. O seu nariz com um bico aquilino, os seus olhos glaciais, inexpressivos,  o seu perfume a magnólias e a lavanda - tudo nela me envolvía.  

Estavamos a comer. Pois... Suspirei.   

Que criatura mais gananciosa! As vozes diziam. Ela está a manipular o cobarde do teu Pai.

Por uns momentos, ignorei as vozes.  Oh sim, eu iria ignorá-las!   

- Adrian Demetrius? - O meu Pai perguntou-me, com os olhos cinzentos, vidrados, a cara pálida. Perguntava-me como é que o Pai teria feito cinco filhos como eu, a Lorelei, o Karl, o Maximilian e a Cecilie.  Ele tinha um ar tão doente, com as suas crises de tosse convulsa, os seus tremores, as febres e a constante respiração aguda, defeituosa.

As órbitas cinzentas, sem expressão, olharam uma vez mais para mim: 

- Adrian Demetrius! - A minha Mãe estava perplexa com o silêncio. 
  
- Mil perdões, Mãe. Só estava a perguntar-me quando é que a Lorelei e a Cecilie irão voltar do tal externato em Shunrasen. 

- Adrian...Eu sei que pode parecer que estamos a mimar as tuas irmãs por oferecermos-lhe um ambiente diferente deste ducado assombrado por fantasmas ...e por...Por! Por coisas como eu, mas eu asseguro-te, Adrian! O Karl não consegue defender o castelo sozinho. De todos os nossos filhos, tu és, a seguir à Lorelei, aquele que controla melhor o sangue e os poderes...Também és dos cinco que consegues controlar os Sussurros Di Euncätzio.   

Isso era verade. Eu sou dos cinco irmãos o que melhor controla o sangue Youkai, e aquela fracção Di Euncätzio, aquela fracção que conseguira controlar Qing, Hachirou, Ryuketsu e muitos outros...Aquela fracção nunca irá representar aquilo que eu sou. Eu sou o Duque Adrian Demetrius Von Tifon. A minha vontade pertence-me.  

- Mãe, o Karl voltou a ter um dos pesadelos acerca da vida do Kato Ryuketsu. 

- Pobrezinho! E pensar que um filho meu teria de enfrentar aquele sangue...Tanta carnificina aos doze anos! - A minha pobre Mãe gritou.  Pequenas gotas geladas começaram a escorrer-lhe do rosto frio e pálido. 

O meu irmão, Maximilian, espreitou por uma das janelas, os longos cabelos castanho-acobreados penteados com um ar infantil. Dois rabos-de-cavalo caíam, cachos encaracolados, delicados. Os olhos azuís olhavam ora para mim, ora para a minha Mãe.    

- Mãe?!  

- Não te metas!  

- Porque é que não me devo meter! Já tenho nove anos, seu palerma! 

Soltei uma risada, embora sooase um pouco diferente da minha voz actual. Nessa altura eu sofría daquele grande mal que todos os adolescentes passam.   

- Porque é que não vais brincar com as bonecas da Cecilie? - Disse eu, trocista.  

- Ora, sua bosta congelada!  

- Max, ouve o  teu irmão! - A minha Mãe ergueu a voz num tom solene. 
  
- Mãe...Eu tenho a certeza que a Senhora Roshini poderia ajudar-nos a---! 

- Não! Se nem eu própria consegui expulsar os fantasmas da minha própria cabeça, o que é que uma Kinnaree como aquela criatura podía fazer?!  

- Pai, o que é que o Pai acha se formos...

Um barulho de um roncar alto e ribombante ecoou por todo o salão de jantar.  

- É mesmo um inútil.

- Adrian! Não fales assim do teu pai.  

- Mas não é a verdade, Mãe?! Desde que ele sacrificou todos os poderes do Senhor Hurakhajam para controlar os Sussurros Di Euncätzio do Kato Hibiki, o Pai nunca mais foi o mesmo. 

- Eu sei...Mas aquilo foi um sacrifício nobre! - A minha Mãe pousou uma das mãos no meu rosto, um pequeno sorriso no rosto pálido, quase translúcido. Os longos cabelos negros roçaram contra os meus. Quem me dera ter o mesmo cabelo que a minha Mãe, aquela cascata negra, sedosa, perfumada! As sobrancelhas depiladas da Mãe ergueram-se, como se ela estivesse a olhar para o horizonte, se bem que ela poderia estar a olhar para  o Maximilian. Nunca decifrei aquele olhar gélido, cristalino. - Eu casei-me com um Humano porque sabía que da semente dele iria nascer o futuro protector do ducado de Shunamari, desde as montanhas de Itshaki até aos Deltas de Ryuketsu e da Senhora Shamanarta.  

Eu poderia considerar aquele discurso um teatro eloquente. Mas a minha Mãe não era assim. A minha Mãe sempre ressentiu o facto do Pai dela, Kensaku, desonrar a família com o comportamento promíscuo.  Ninguém faz com que a minha Mãe perca a face. 

Engoli em seco ao pensar que tipo de castigo a Mãe teria pensado para o próprio Kensaku ter saído do quarto dela com o corpo a desfazer-se em cacos.  O Kensaku podia ser forte, mas não era um feiticeiro tão poderoso como o temido Kato Ryuketsu, o antigo bobo da corte do Château Von Tifon e o principal assassino do Duque Leberecht Von Tifon. Ryuketsu poderia ter tido outro nome, mas ele decidira manter o nome do deus do Rio que o vira crescer. Se havía uma coisa que eu admirava na Mãe, era como ela nascera numa era em que dois destes homens lutavam para serem os "preferidos" do Duque Von Tifon. 

- Mãe? Posso ver o que aquela rapariga do Oeste está a fazer?  

- Claro que sim, meu querido.  



(Continua) 







domingo, 23 de setembro de 2018

Páginas dum Diário Secreto

Tudo bem? Houve um hiato muito grande - não gosto de escrever em Português, mas já estou activa.  Vou ver se consigo adicionar uns botões de partilha de Facebook e Twitter para vocês partilharem as minhas histórias.  



Olá, Jessica Von Tifon por aqui.

Encontrei um diário poeirento no quarto onde o meu Avô costumava dormir com a Vovó Abir.  É uma pena que esteja escrito com carácteres Ku-naira. As páginas são muito bonitas, com um aroma penetrante a bambu e a incenso. Tinha um aroma a incenso e a baunilha preta. Estremeci um pouco ao pegar no velho diário. Algumas das páginas pareciam ser feitas de gelo.  Eu não devía estar a ler isto, uma vozinha começou a me chamar, a convencer-me. Eu sei que eu não devía fazer tal coisa. .  
Porém, o meu Pai nunca me falou sobre o Avô.

Era uma meia-noite que apavorava, e, entre pequenos reflexos de flocos de neve, abandonados, eu olhava. Olhava, ora para o livro, ora para os meus cabelos, o único reflexo de calor que vinha da lareira do meu avô. 

A Mãe não vai desconfiar se eu dar uma olhadela, não é? Afinal de contas, eu não sei ler Ku-naira. A maior parte das partículas gramaticais nos Kanji pareciam ser demasiado arcaicas para eu perceber.   No entanto, assim que eu comecei a tentar ler um poema, as palavras se rearranjaram, carácteres outrora muito complexos para mim começaram a mudar, a tal ponto que o discurso com Kanji verticais se reorganizou para se parecer com a minha língua, com o Schangrunnmarck. 

" Duvido que alguém possa compreender estas palavras
Tão simples, mas tão complexas..." 

Dei um salto, com um pequeno grito a nascer na garganta. Acolhi-me, amedrontada, aconchegada com a manta. Os meus cabelos cor de sangue olharam para o livro, ora para a janela arcaica, gótica, em forma de espada. 

Um rumor triste, vagaroso de pinheiros e cisprestes a dançar, ecooava das cortinas grossas, tingidas numa cor tinta e mórbida. 

Com a vela como companhia, eu retomei a leitura. 

"Ah, este jardim tem uma cor diferente, 
É uma cor de Primavera, 
Era uma radiante luz, luz radiante
Entre estas divagações a flor de Inverno estivera
Aqui, presente, presente! 
Das sakura em flor e das outras flores, não menos majestosas,
Como poderia eu, sentir-me apático, indiferente?  
Mas eu estou. Eu estou. Porque a minha Mãe não está aqui comigo. " 

Uma ponta de tristeza fez com que eu suspirasse perante estas linhas. Não sabía o que fazer perante esta confissão tão intíma. 


Fazía-me lembrar um poema sobre o Nykk, uma criatura de lagos e rios da minha terra, da terra do meu Pai.   

A princípio, pensei que estaria a sonhar. O velho diário do Avô só podia estar escrito em Ku-naira e nada mais.

A Bisavó Yui...A Bisavó Yui não parecia ser uma criatura tão má assim quando está nos quadros.

"No meu jardim, há um cipreste com uma altura de cento e trinta metros. Durante uns anos , pensei que pudesse mandar alguém cortá-lo. Mas aquela árvore não cede, nem com a mais afiada das lâminas. 

A árvore deve ter mais de oitocentos anos, e, em pequeno, eu adorava esconder-me debaixo dela." 

Eu consigo ver a árvore, mas agora está coberta de neve. É muito maior do que a que o meu Avô fala. Deve ter mais de duzentos metros. Agiganta-se no meio das cerejeiras, nuas, escuras. No entanto, eu continuo a ler.

"---uma vez, uma pequena rapariga com cabelos escuros, cor de obsidiana e um sorriso infantil, começou a brincar no meio das magnólias. Uma pedra de jade em forma de círculo com um buraquinho estava pendurado ao pescoço da pequena. Algumas penas de quetzal adornavam-lhe uns brincos cor de cobre. 

Ela era tão bonita, com os olhos verdes e a pele escura, morena.  

Eu nessa altura era um rapaz de doze anos. Tentei avisar a menina para que ela não perturbasse as antigas árvores. Ora, algumas destas árvores tinham sido plantadas pelas Cy-bata Ai, Ayako e Akiko. As minhas antepassadas com sangue de demónio aranha gostavam muito das árvores de cerejeira. No entanto, muito do ódio que elas agora nutriam pela família Von Tifon contaminara os espíritos das árvores. Se a menina Aosbeltzi não tivesse cuidado, os Yokai do jardim podiam fazer com que ela se perdesse. 

Apanhei uma vela para que a escuridão trazida pelos ciúmes dos fantasmas de Ai, Ayako e Akiko não me engolissem. 

« Por favor...» Disse numa voz tímida.  

A menina continuava a admirar as cerejeiras, as flores de ameixoeira, as amendoeiras, as peónias e as magnólias. 

« Afasta-te das cerejeiras! »  Gritei num tom alarmado em Ku-naira.   

Finalmente, como se eu tivesse quebrado um feitiço, a rapariga olhou para mim. 

Embora ela provavelmente não soubesse falar Ku-naira, ela olhou para mim com uma expressão curiosa, assustada. Nunca um olhar cor de avelã me emocionou tanto como aquele. Ela correu directamente para a varanda onde eu estava. Ela estava a tremer. Abracei-a inconscientemente. Não porque ela fazia-me lembrar da Lorelei, mas sim porque ela tinha a sua própria luz. Não houve uma única palavra trocada entre mim e a rapariga. Ela limitou-se a chorar e a estreitar-me no abraço. Ela não me conhecía de lado nenhum. 

Quem era ela para estar a tocar-me de uma forma tão impudente? No entanto, eu apercebi-me que as cerejeiras tinham um pouco de inveja da menina do Sul de Shunamari. A maior parte das criadas sempre me disse que eu tinha as mãos gélidas, mesmo que usasse luvas. No entanto, ali estava uma pequena de nove anos, a procurar calor numa pessoa que não era nem humana, nem yokai.

Brinquei um pouco com o pendente de jade com uma serpente gravada no interior. Ela devía gostar muito do pendente para levá-lo até ao meu palácio, até aos meus jardins. Por uns momentos, a rapariga Aosbeltzi deixara de ser uma camponesa ignorante e eu deixara de ser o filho esquisito de uma mulher que todos os homens de Shunamari temiam. Eu era apenas um rapaz num kimono azul-escuro e cabelos louros escuros apanhados num rabo-de-cavalo, e ela, uma menina com uma túnica turquesa. Eu sabía que ela era de uma classe inferior à minha, mas não deixava de ser uma nobre.   Nenhuma rapariga qualquer Aosbeltzi usaria um pendente de jade de uma maneira insolente.

« Cheiras tão bem...» Falei, o meu rosto branco a centímetros do dela. 

Por uns momentos, o meu coração - algo que eu tinha como certeza nunca ter existido - começou a bater. E uma cor parecida com a das cerejeiras apareceu no meu rosto pálido. 

Uma voz interrompeu aquele momento: 

« Adrian Demetrius!  Adrian! » Era a minha Mãe. 

Despedi-me com um pequeno sorriso e um beijo na palma das mãos da pequena princesa Aosbeltzi. 









sábado, 29 de outubro de 2016

A filosofia de Portugal


Olá...

Não sei se ainda há pessoas a seguir-me, mas devo dizer que em cinco, não, dez anos, há muitas coisas que mudam. Este texto é uma crónica, mas também poderia ser um poema. Porque é que digo que poderia ser um poema? Porque há muitas pessoas que não sabem interpretar textos, sejam eles técnicos ou literários. Eu gosto de poesia, especialmente quando é escrita por pessoas que também são professores ou educados naquela velha - mas sempre inovadora - disciplina de Filosofia.
Lêdo Ivo poderia ser um filósofo; ele iria sorrir quando eu respondesse à pergunta "o que é um filósofo". E eu diria que era, acima de tudo, uma pessoa que gosta de pensar, um "amigo do saber" na antiga língua dos Gregos. Há pessoas que, mesmo com uma licenciatura - ou com um doutoramento - que gostam de saber ainda mais, que gostam de fazer perguntas. Ora, o tal "canudo" deve servir para alguma coisa. Eu, quando era pequena, nos meus primeiros anos de leitura, gostava do Lêdo Ivo e do Jorge Amado. Eram uns "tios emprestados" que escreviam livros, e esses livros tinham umas capas muito engraçadas.

Voltando ao presente, gostava de contar-vos como há duas Filosofias muito simples. Não tem nada a ver com um estilo filosófico "optimista", ou com o tal "cinismo" teórico, maçudo, que muitos colegas meus bocejavam ao ler.  Eu estava a tomar o meu café, à espera de ouvir qualquer coisa na Rádio da Antena 2, numa padaria. De repente, por um deslize da minha mão, o Samsung Young , o tal "smartphone", começa a tocar a rádio a "alta-voz". E não é uma voz qualquer que sai através do pequeno chip de rádio. É a voz do "Tio" Lêdo Ivo, a declamar o poema "O Rato na Sacristia". O que aconteceu  quando a voz de Lêdo Ivo - "ledo" no antigo Português-Galaico, significa "feliz", "alegre", pelo que sempre pensei que as pessoas ficassem felizes ao ouvi-lo - pronuncia a frase "O Arcebispo", a empregada, que parece ser dois anos mais velha do que eu, pergunta, num tom muito indignado:

"Porque é que o Arcebispo vem à baila acerca de um rato?"

Eu tento explicar-lhe que o rato não é um rato qualquer, que o poema tem o seu estilo metafórico. Eu, que sempre pensei que as metáforas fossem as figuras de estilo mais fáceis da língua Portuguesa.

A empregada, com o canudo de restauração, começa a dizer que isso não tem jeito de ser, que nenhuma figura do Clero e devotos "Homens de Deus" deveriam ser ridicularizados. Comecei a perguntar-me se um ratito tão pequeno poderia dar uma barafunda, porque a empregada do café tinha levantado a voz no seu sotaque à Porto. Era como se eu tivesse dito que Cristo tinha feito um pacto com o Diabo.

Decidi acabar com a conversa. Não valia a pena gastar o meu Latim, quanto mais o meu Português. Houvera uma falha na comunicação.

Porque é que uma pessoa não pode escrever um poema sobre um rato e uma sacristia? Há pessoas que escrevem sobre mortos-vivos e sobre dragões, e ninguém os censura. Outro exemplo muito caricato desta "Filosofia Portuguesa à antiga" é a questão da  rapariga de seis anos e da Mãe, uma cliente no mesmo cabeleleiro que por acaso, eu frequentei há poucos dias. A menina era engraçada, lia - ou fingia que lia, não sei - um livro. Tinha uns cabelitos louros com uns caracóis "giros", como disse a Dona E. Ora, eu estava com uma t-shirt "quase sem mangas". O "quase sem mangas" é uma expressão, uma vez mais, da cabeleireira. E, por acaso, havia uns meses que eu não depilava as axilas. A Dona E. é tolerante o suficiente para não dar importância. Mas cá está, o futuro da Nação ,com seis anos, a dizer: "Mãe, aquela menina parece um rapaz com os sovacos peludos". Foi como se alguém tivesse dito uma piada qualquer num teatro de revista, ou num sketch de Carnaval. A Mãe e as outras clientes desataram a rir-se. E, para além disso, ainda disse "sim, querida, ela é muito feia". Foi a partir de aí que comecei a pensar. Afinal não há só a filosofia do bem-pensar, de raciocionar e pôr-se no lugar do outro. Há a Filosofia Portuguesa, uma filosofia mesquinha, sexista e rude. Não quero com  isto dizer que detesto as minhas compatriotas, as mulheres portuguesas. Só acho que deveria haver uma Filosofia desde o primeiro ano de escolaridade. Talvez assim, a miúda de seis anos não pensasse "ela é feia". Talvez pensasse "se calhar está ocupada".

A Filosofia também poderia ajudar um sem-número de Mães a pensar: "como é que vou fazer para que ela deixe de ver aquelas telenovelas e séries um pouco estúpidas". Na minha opinião - caluda, pessoas a julgarem-me porque não tenho filhos, e, logo, não tenho direito sequer a uma opinião - há muitas novelas (não estou  a falar de séries americanas, isso é outro assunto) e séries que parecem estar feitas para derreter os cérebros de muito boa-gente. O Bullying, se não é desculpado, é glorificado, de uma forma quase subliminar. Comportamentos de rapazes - ou raparigas - manipuladores, tóxicos são quase encorajados. Se houve um exemplo claro para a minha geração, esse é o Twilight e - cá está, uma novela portuguesa - os Morangos com Açúcar. Sexo sem protecção, comportamentos psicóticos/tóxicos/bullying grave, suicídio...Havia uma forma de narrar isto, mas não através de séries com argumentos de marketing e falaciosos. Não gosto de dizer mal da cultura do meu País, mas, a verdade, é que nunca vi um Pai (ou Mãe) português sem uma educação com uma disciplina de Filosofia que soubesse compreender as séries de hoje em dia, os Avós, o comportamento da pressão alheia. Quando uma série de Pais começou-se a queixar por causa das nossas, tão tradicionais "Praxes", eu comecei a sorrir ironicamente. Claro, querem que eles façam o quê se não têm uma forma de contra-argumentar com este "Bullying institucionalizado"? Detesto a forma como alguns pais dizem "cala-te" em vez de dizerem "porque é que estás a chorar". Uns amigos Coreanos dizem "chega" - "tô" - quando querem disciplinar os filhos. E o engraçado é que na Coreia do Sul, há escolas em que é ensinada aos adolescentes uma forma de serem assertivos e de perguntarem "porque é que estou a fazer isto?"

O meu Pai - ele é licenciado em Filosofia - sempre disse "Catarina, o melhor é estares sozinha do que apanhares um grande susto. Até as raparigas da tua idade podem ser muito más". Ele também trabalhou com pré-adolescentes.

Quando as pessoas perceberem que a velha Filosofia Portuguesa do "quero, posso e mando" não leva a lado nenhum e comecem a pensar "tenho de pensar no outro, tenho de ter orgulho em gostar de mim: não posso ser manipulada, será que isto irá fazer-me bem no futuro", talvez não tenhamos tantos suicídios ou tantos "Desastres no Meco" com pessoas a morrerem por causa de estarem na Praxe. É uma vergonha, mas a Filosofia Portuguesa é, talvez a raíz de muitos males por aqui.   

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Poisonous earl grey



13 de Novembro, por volta das sete da tarde

                   Enquanto estava a tomar um Earl Grey mint and Lemon (podem tirar-me de Londres, mas não podem tirar o meu Earl Grey) reparei que o sacana do Dr. Fixtanea e o crápula do Finistergäse tinham entrado no café saloio do "Sencha ya Omakeda". 

O Finistergäse anda sempre de óculos escuros, com um chapéu bicudo à maneira dos antigos bruxos. O Fixtanea usa sempre um chapéu de feltro preto. O primeiro andava com um  casaco pendurado nos ombros, o outro andava com um elegante e moderno sobretudo preto, que chegava aos antigos e caros sapatos Italianos pretos. Com um cachecol ao pescoço, o velho doutor pediu um maço de cigarros mais caros que o dono do café tinha!

Finistergäse, um homem de quimono cinzento e um pouco coçado, adivinhei que fosse o convidado do homem sinistro aquem pertencia a limusina.  Falava no dialecto Alemão de Shunamari, como que a pedir desculpa por ser tão distraído. Aí, percebi que quem era o pobre coitado que precisara dos quinhentos marcos era ele, pois estava com um ar um tanto apreensivo nos lábios. Trazia quatro adagas Japonesas, semi-ocultas nas calças do quimono. 

O sádico e bêbado Finistergäse que eu vira no Dia da Magia Negra a gozar com a Imperatriz Serpente de Fogo, estava a tremer que nem uma folha diante do Fixtanea!  Consegui cheirar o hálito dele aa milhas, com o sabor desagradável a arroz queimado, fígado de qualquer coisa e cebola áspera. 

O Fixtanea pronunciou algo em Japonês a que eu não percebi muito bem. Com certeza que não era um elogio! Entre as poucas palavras, sibiladas numa voz grave e arrepiante, eu apanhei o nome da Tsuna, com o habitual sufixo carinhoso "chan".  Aqueles dois estavam a falar da minha irmã emprestada! 

Pousei discretamente os phones do walkman nos bolsos, para não dar muito nas vistas. Tinha o cabelo completamente molhado e encaracolado, emaranhado como uma bola de lã avermelhada. Se tivesse sorte, eles não reparariam em mim! 

A porcaria do tempo, com o morrinho que apanhara em Cyborg Town, transformara-se num aguaceiro dos Diabos quando eu tinha chegado ao ducado de Shunamari. Passara a correr pela velha aldeia Japonesa de Itshaki, alugara uma bicicleta, e precisamente quando estava quase a chegar à estação de metro de Omakeda (outra aldeia Japonesa no velho ducado do meu avô, que Deus o tenha, embora por esta altura acho que ele deve estar mais no Inferno do que no céu). 

Abrigada no café tipicamente Chinês, vi um relâmpago a rasgar os céus, atingindo cruelmente uma árvore, a pouco menos de dois mil pés de distância.  O trovão fez com que a sala velha tremesse, suportada por ferros, arcos de madeira cor de sangue e vigas de pedras cinzentas e nada agradáveis.  

Não me admirava nada que o café datasse do tempo em que o Daisuke ainda tinha cinco anos...! 

As janelas redondas, com cortinas de musgo, molhado e sombrio, os candeeiros de papel à maneira Chinesa, com carácteres em Bellante do Norte, a baloiçar no meio do tecto escuro e gelado...Aquilo mais parecia-se com um cenário de um filme "noir" dos anos 40 sobre Chinatown do que um café no meio da rústica estrada de Shunamari, cercada por um bosque um tanto intimidante...!     

Só quando Finistergäse pediu uma lata de cerveja em Inglês é que apercebi-me que estávamos no século vinte e um.  

- Que tempestade dos diabos! - Comentou o gerente, num sotaque Japonês, enquanto lavava os copos. - Até parece que os Oni andam à solta...Não é que eu acredite nessas velhas superstições, mas cá em Shunamari, até parece que a floresta pode pregar partidas aos incautos!   

Com um sorriso informal, dirigiu-se ao velho doutor.  

- E o que é que o senhor irá desejar? 

- Um café preto com canela se faça favor! - Ordenou insipidamente o Dr. Fixtanea, não parecendo mais o encantador cavalheiro de idade  que beijara as palmas das mãos da minha irmã. 

De repente, ao reconhecer o sotaque, o gerente começou a falar em Japonês, num tom muito educado e simpático. Fazia as coisas com a maior das naturalidades, como se estivesse concentradíssimo no trabalho.  

O Dr. Fixtanea parecia nem um tanto interessado na conversa um tanto "chacha" do gerente, que devia ter os seus quarenta, quarenta e tal anos. Soprava uma nuvem de fumo de vez em quando, como se a tentar ler no reflexo do espelho à noveau-art, os olhos dos clientes e o que é que eles diziam. 

Entretanto, o idiota cobarde do Finistergäse, falava fluentemente com um ar interessado em Japonês, continuava a suar rude, rouco e cínico. Subitamente, apercebi-me de um pormenor muito estranho ao observá-lo de esguelha: Finistergäse tinha dois cornos a sair do chapéu bicudo. Fixtanea tinha um olhar penetrante, quase demoníaco que fazia com que a maior parte  dos homens ali ficassem parados que nem estátuas! Outros cairam, mais duros que nem pedras...! Se calhar até já tinham esticado o pernil! 

Antes que pudesse notar, o gerente começava a abanar-se com a toalha, como se estivesse muito abafado. Tentei não engolir em seco. Ele parecia estar muito mais aterrorizado do que eu, com gotas quentes de suor a cair da testa morena. 

- Agora que me lembro... - Disse em Inglês, a arfar, enquanto o Dr. Fixtanea esboçava um sorriso maldoso. - O meu pai contava-me quando era pequeno, uma kaidan: um dia, na altura da guerra, ele viu um homem a sair de uma limusina preta, a fumar um cachimbo. Ele devia ter dezasseis, dezassete anos!  Mas ele sabia perfeitamente quem era aquele homem...! 

Antes que o coitado do gerente pudesse revelar quem tinha sido o feiticeiro demoníaco que o pai tinha visto, este primeiro começou a cuspir sangue. Era tão vermelho quanto as paredes do próprio café. Tão quente quanto o meu cabelo, que caía, arrepiado nos ombros.  

Os poucos homens que tinham sobrevivido ao feitiço dos olhos diabólicos de Fixtanea, e que tinham escapado ou resistido àquele letal nevoeiro azul-claro que pairava no café, pareciam um pouco ou tão arrepiantes quanto Finistergäse. 

Este último soltou uma risada maliciosa. Apunhalou o gerente com uma das adagas e clamou algo cruel e incompreensível na língua do Bellante do Norte. Tirou os óculos, e pude ver que ele não tinha olhos de todo!

Neste momento crucial, um tipo repara que tenho as calças um pouco descaídas e um pouco justas para que ele tivesse uma ideia de como eram as minhas traseiras.

- Que rabinho fofo, ruiva! - Assobia sonoramente num tom bêbado em Inglês.  

Antes que eu possa enfiar o resto do chá na braguilha do cara de cu, já o Dr. Fixtanea e o Finistergäse viram-se para mim, um com um olhar azul e cinzento, fantasmagórico, o outro com um sorriso demoníaco semelhante àquele que eu vira no Daisuke. Eu, a única mulher que não usa avental ou está morta de susto, a mulher que devia usar algo feminino do que calças à militar, botins pretos, um casaco de couro azul-escuro, e uma camisola de manga comprida, de algodão, quente, suficientemente justa para que as minhas mamas se notem, mesmo com a porcaria do soutien! 

Que é que queres? Quando uma pessoa está a ver que vai haver uma chuva das boas, só quer algo seco onde se aquecer até que o dito-cujo passe! Tiramos aquilo que nos calha na rifa e pronto! E logo saiu-me um café antiquado, infestado de bruxos demoníacos! Tudo isto, juntamente com os raptores da Tsuna! Ela tinha conseguido escapar e sobreviver no Halloween...mas então e eu?        




terça-feira, 20 de novembro de 2012

A língua dos Bruxos: Bellante do Norte

              
13 de Novembro, de 2004



 Falando em pessoas irritantes, a biblioteca não é exactamente o lugar perfeito para trabalhar. primeiro, as raparigas lá não param de falar, mesmo que seja um local de trabalho, segundo, não consigo perceber uma única palavra do que dizem. Ainda bem que tenho o Daisuke para me alegrar! Sabes o tipo do Café? Parece que ele é um dos meus primos do lado da minha bisavó. Ele é neto do meu tio-bisavô, que pelas poucas palavras que percebo do dialecto de Shunamari dele, ainda está vivo.  Para além de estarmos com os meus phones - para não ouvirmos as histéricas das raparigas das secundárias de Cyborg Town - a ouvir os Iron Maiden, ele ajuda-me a ter paciência com o computador.

O computador é uma lentidão, o que torna o trabalho ainda mais difícil. O meu professor de Bellante Arcaico do Norte mandou-me pesquisar "as semelhanças entre o Japonês Arcaico e o Bellante Arcaico do Norte" como trabalho de casa. Mas com esta lesma, vai ser mais fácil eu falar do sotaque arrevessado dele em Inglês do que de uma língua que só os velhotes de Shunamari e de Cyborg Town sabem falar. É mais por causa do Daisuke que estou a fazer isto. 

As raparigas não paravam de falar. Era como se não tivessem mais nada do que fazer a não ser rirem a bandeiras desbragadas!  A coca-cola caiu-me um pouco mal na garganta. Demasiado fria para o meu aparelho dos dentes. Era como se o tipo que arranjara a bebida tinha ido buscar um pouco de gelo da sarjeta lá na rua de Cyborg Town.

Enquanto o Daisuke explicava-me um pouco sobre o antigo dialecto de Osaka falado no século sexto, eu perguntei-me se ele era assim tão novo quanto eu pensava.

Ele suspirou, ao apontar para o indíce do livro. Falava sobre os últimos séculos antes do Tratado da Magia Universal, e como o Bellante do Norte fora influenciado com estrangeirismos Russos.

- Não sou assim tão velho quanto a maior parte dos Feiticeiros Demoníacos, só tenho  oitenta e cinco anos! - Exclamou ele, um pouco triste. 

- Não pareces assim tão velho! - Sorri num tom de brincadeira. Não acreditava que ele tivesse aquela idade.

- Não sabes? - Arregalou os olhos, um pouco surpreendido. - Os da tribo dos Youkai envelhecem muito mais tarde, ao ingerirem órgãos humanos.

Como é que eu podia saber...? Nunca soube qual era a diferença entre um feiticeiro humano, um feiticeiro demoníaco, um bruxo e um feiticeiro branco! Fiquei curiosa com essa palavra nova...De certeza que era um empréstimo do Japonês.

Ao pôr, estranhada, as mãos na mesa, eu arregalei muito os olhos:

- Ser-se bruxo e um feiticeiro demoníaco não é a mesma coisa?

Ele sorriu e consegui ver, no reflexo negro do chocolate quente, cercado de vapor quente e perfumado com canela, dois dentes caninos e grandes a crescerem dos lábios do meu louco primo. Com o cabelo rapado e pintado de roxo do lado direito e preto natural do esquerdo, os piercings nas orelhas pontiagudas, não me admirava nada que as raparigas lá da biblioteca perguntassem o que é que uma "maria-rapaz" como eu fazia com aquele pão delicioso.  

- É claro que não...! Pode-se ser ambos, mas não é a mesma coisa...! Eu, por exemplo, sou um Kolmanatry, um feiticeiro demoníaco e um cy-bata ao mesmo tempo. Sou um feiticeiro, de sangue de Youkais, artista (é isso o que significa a palavra Kolmanatry - "artista excêntrico").

- Isso percebo eu! - Ri-me, com uma ponta de troça na voz, com as unhas perfumadas com cerejas ainda na coca-cola. Aquelas palermas bem que queriam estar no meu lugar, a falar com o docinho do Daisuke. Tenho de admitir, ele sabe falar Inglês. O sotaque fica-lhe tão bem com o sorriso maroto demoníaco e os piercings na língua.  

Deu-me uma palmadinha nas calças militares.

- Vá lá, prima, não sejas marota!  - Riu-se, ao retornar ao Alemão, língua que se sente mais à vontade. Pigarriou. Acho que é um pouco difícil para ele fingir ser velho. O Daisuke é o que uma pessoa chama de "jovem por dentro". - Bom, Youkai não é exactamente demónio! Pode ser um sinónimo de "espírito sobrenatural", "fantasma", "aparição"...Basicamente é uma criatura que normalmente a razão humana não consegue explicar.  A palavra Kätrtzyaamnahuatli ("bruxo" no Bellante Padrão)  joga com a pronúncia do nome Di Euncätzio. Mas também não é "feiticeiro demoníaco".

Ao desenhar com um pedaço de chocolate seco, ele apontou-me os carácteres "formais" em Bellante do Norte para "bruxo", "youkai", "feiticeiro demoníaco".  Eram completamente diferentes dos dois ideogramas que se utiliza para dizer o nome "Di Euncätzio".

- Como vês, no Norte ainda é tabu escrever o nome Di Euncätzio. Quando procurares por obras do "Mestre Samiel", de Onisamatzeka, ou do "Mestre Saburou", tenta ver os pseudónimos deles. - Avisou, num tom demasiado sério para que eu risse da situação.

- Mas...por que é que é proíbido...? São só um monte de rabiscos velhos...! - Repliquei, um pouco admirada com o talento e cuidado com que ele escrevia com o chocolate.

Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, o meu primo pousou a mão nos meus lábios.

- Estou a usar o chocolate, porque é sagrado...Sabes o provérbio "falas no Diabo e ele aparece"? As palavras em Bellante Arcaico do Norte não eram só caracteres, como acontece com os Kanji ou os Hiragana em Japonês. Faziam parte da magia e dos feitiços dos Bruxos! - Exclamou, num murmurar, como se a mera enunciação da antiga língua dos Bruxos fosse algo perigoso!

Tão rápido quanto pusera as mãos nos meus lábios, ele retirou-as, num gesto delicado.  Suspirei, um pouco apanhada de surpresa. O Daisuke, ao contrário do que a Sara me contara sobre ele, cheirava bem.  Tinha acabado de trabalhar na "Senhora Diamante". Parecia que os anos do pós-guerra tinham-no amadurecido, ou pelo menos, segundo a minha mãe "aceitar aquilo que é nascer num pântano e tornar-se numa flor de lótus".

É que o Daisuke, pelos vistos, antes da Segunda Guerra, era muito infantil. Depois, foi forçado a fugir para Hong Kong. Uma vez que ninguém associava-o, nem com o avô Hyasuko Murakami (depois conto-te sobre o meu Tio-Bisavô) , nem com o Duque Von Tifon (sabe-se lá porquê),  ele começou a tocar músicas ocidentais como ganha-pão, em clubes-nocturnos. Pode-se dizer que o meu primo "comeu o pão que o Diabo amassou"...mas, como o meu primo é filho de um cyborg, não vou utilizar esta expressão. Como o pai do meu primo foi concebido já é outra história. E como nós os Ingleses já não acreditávamos muito em Bruxas - quanto mais em "ogres", que foi a tradução mais à "ocidental" que o Daisuke arranjou na altura para explicar o que lhe acontecera, sendo ele neto de um Oni - ele lá conseguia arranjar dinheiro para comprar arroz. De repente, conseguiu arranjar um contracto com uma misteriosa companhia discográfica Japonesa, que apostava no moderno "rock" ocidental, lá para os Anos 60, ele começou a vender discos na Bellanária do Sul (aquilo que não era ocupado pelos "Diabos Comunistas", como disse a minha mãe), em Osaca e inclusive (por esta eu fiquei boquiaberta) Tóquio!

Por isso, ao acabar o seu chocolate-quente (que, por esta altura já era um gelado de chocolate do que outra coisa), o Daisuke disse que preferia esta vida de artista do que dedicar-se à profissão de feiticeiro demoníaco, que, tal como eu vira, era muito perigosa hoje em dia.

- Então, isso quer dizer que a tua personna no palco e tu na vida real são completamente diferentes? - Perguntei, muito surpreendida. Ah, eu sei perfeitamente que os metaleiros e os rockeiros são muito diferentes na vida real.

- Sim...Eu vivo uma vida simples. Não gosto que as pessoas comparem o meu "eu" artístico com o meu "eu" pessoal. O vocalista dos Kilresy com a boina preta é diferente do Duque Von Tifon ou de Kensaku Murakami...é uma caricatura dos Bruxos! - Disse num tom muito sério. - Vamos lá ver o que mais interessa: os seis elementos Bellantes, podes enunciar as diferenças no Bellante Arcaico do Norte e o Japonês Antigo.

Estava a tentar perceber a diferença entre o carácter Japonês para "água" e o homólogo em Bellante do Norte, quando lembrei-me do anel que supostamente devia proteger-me da Magia Negra. Este anel tinha aquilo que em Bellante do Norte se poderia ler como "Terra, Água, Fogo, Ar e Luz, Victória!" Então era por isso que não tinha sortido efeito. Tezcatlipoca esquecera-se da Escuridão. Mas também havia outra coisa que tinha o símbolo da água, num carácter em Chinês: um pendente de jade em forma de um arco, que a Tsuna traz sempre agora ao pescoço.


Ao ler os meus pensamentos, o Daisuke suspirou.


- É normal...A maior parte das Fadas costumam usar esses talismãs simbólicos que representam a tribo (neste caso uma ondina) e a classe a que pertencem. - Subitamente, ele apercebeu-se de quem é que eu que eu estava a falar. Quase que cuspia o segundo chocolate quente! - Mas tu estás a dizer que a viste com um pendentes desses ao pescoço?!


- É esquisito, não é? A Tsuna, a protegida da minha mãe a usar um pendente usado por Fadas! - Disse eu, ainda muito surpreendida com tudo aquilo.


- Não é esquisito se fores filha de uma feiticeira humana como a Tsuna! - Comentou o Daisuke, com o sobrolho carregado, ao tentar anotar o carácter Chinês para "água" na agenda. - E eu que pensava que a arte de trabalhar metais para que se transformem em amuletos poderosos já tinha desaparecido! Quem quer que tenha oferecido esse pendente à Tsuna, sabia que a prima Katarina não é boa-rês!  A maior parte dos Bruxos demoníacos odeia os Feiticeiros Humanos por causa do que lhes fizeram nos últimos séculos...Talvez a prima Katarina tenha herdado esse ódio do Trisavô! Eu ainda nem era nascido quando a Magia foi proíbida no Japão...!


- Bom, esse pendente só apareceu depois do dia da Magia Negra, no correio. - Confessei, um pouco apreensiva com a minha "irmã emprestada".  - Depois da festa do Halloween, não a vi!


O Daisuke olhou um pouco para mim, depois fez uma cara de quem estava muito assustado, como se tivesse recordado de um velho pesadelo. E eu que julgava que a minha mãe era uma santa!  Não me admirava nada que ele estivesse preocupado: a minha mãe pelos quadros está sempre com um ar de....pronto de uma mulher fácil. O retracto do meu avô, porém, aparecia-me na memória como algo majestoso, orgulhoso...Nunca malvado!  Mas também sei tão pouco sobre a minha família...! Só estou cá há uns meses...Parece-me mal falar do Daisuke como "Tio".  Eu trato-o por "tu", e ele parece gostar de mim, embora sinta-se pouco à-vontade para falar da família.


Depois da explicação, ao pagar o dinheiro, tanto da minha coca-cola como das duas canecas de chocolate-quente, ele pousou o casaco de couro nos ombros, como se estivesse a sugerir que eu viesse com ele. Os olhos dele pareciam tão queridos ao olharem para mim...!


- Tens a certeza que não queres que te dê boleia...? Se alguém conseguiu manipular a Tsuna e quebrar o feitiço, tanto do teu anel como do pendente dela, então é porque é um bruxo muito poderoso!

Eu disse que não, que sabia defender-me sozinha...Mal sabia eu o que é que estava para me acontecer naquela tarde...!

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Afrodísiaco da Terra feminina


Não chores, pequena flor,
Os teus lábios sabem a um jardim,
onde as rosas negras são mais apreciadas!
Sabedoria antes do amanhecer,
Folha assustada, manchada, estragada,
No meio do vendaval,
Fruto amargo do poder,
Haverá algo mais para além
Da certeza dourada,
Dessa tua vida arruinada...?

Estranha doença de bebida,
Fermentada do néctar do amor, 
Que sabor o teu peito teria,
Se eu lhe pusesse um pouco de sal, 
A que doce perfume sabe o teu pescoço,
Mais profundo do que um vale...?


Dor, paixão, tristeza, morte,
És tudo isso, donzela do meu torpor;
Faço do fruto verde o meu amuleto da sorte,
És rainha, anjo, deusa,
Bebida destilada em framboesa cruel, 
Enganador maracujá, mais doce que o mel,
Contigo, não sou assim tão forte,
É o néctar que faz parecer este animal de porte,
Um pequeno cordeirinho que não teme o fel,
Fel dessas pernas, quentes e douradas...!

És uma droga e um prazer,
Bebida que enche o meu corpo de saber...!


Afrodísiaco da Terra Feminina, por Erwin Di Gracxiushandrian, 1845, Edições Bellantes